Arte, resistência e ancestralidade que se conectam

Primeira edição do Circuito Saravá constrói fortes conexões em Belém

Redação por Yasmin Talita

Abertura do Circuito Saravá na Galeria Benedito Nunes – Foto: Gabriel Marques

Resistência, essa é a palavra de ordem do primeiro dia do Circuito Saravá. A mostra, na Galeria Benedito Nunes, que tem como objetivo fazer a conexão entre arte e ancestralidade, por meio da visão de cinco artistas negros, levanta diversas questões do passado, presente e futuro do povo negro. A abertura aconteceu no dia 22 de abril, na Galeria Benedito Nunes, em um evento cheio de orgulho, que contou com a presença e sabedoria de Mametu Nangetu, acompanhada de uma salva de tambores.

Belém é uma cidade de extremos, que vive uma cultura única e rica. O Circuito Saravá tem o intuito de reconectar a população com a arte. A ideia do evento surgiu com a vinda do multiartista carioca Rona Neves a Belém, que possui um vasto trabalho sobre ancestralidade e veio para criar um diálogo com jovens artistas paraenses sobre a valorização da cultura negra.Rona Neves conta que, desde a infância, se sentiu conectado a ancestralidade, devido a diversos fatores, como o fato da mãe e da avó confeccionarem as roupas que toda família usava, ao bisavô que confeccionava os brinquedos dos netos, um valor afetivo que lhe deu uma liberdade maior para se conectar enquanto produzia qualquer tipo de arte. “Quando eu encontro a arte no meu caminho, a assumo sem ter uma formação e ela começa a se manifestar através de um desenho ou uma performance, eu me pergunto novamente de onde isso vem? Eu acho que vem de muito, muito, muito tempo atrás”, explica Rona Neves.

Multiartista Rona Neves – Foto: Gabriel Marques

“Quando eu encontro a arte no meu caminho, a assumo sem ter uma formação e ela começa a se manifestar através de um desenho ou uma performance, eu me pergunto novamente de onde isso vem? Eu acho que vem de muito, muito, muito tempo atrás”

Para ele, a importância do circuito é imensa, porque a educação e acesso a esses tipos de eventos e ações que irão despertar nos jovens a vontade de querer fazer algo para mudar a realidade que vive e ainda cria uma troca de aprendizado engrandecedora para todos os presentes. “O circuito tem que refletir na educação, no acesso, principalmente nas zonas periféricas que quase não circulam por esses ambientes”, diz o artista.

O artista também comenta que a parte mais importante de suas andanças pelo país é a circulação que a arte o possibilita, seja em uma cidade nova ou até mesmo no bairro que cresceu. Sobre essa conexão com a arte, ele fala sobre a busca de fazer algo com que se identificava. “Eu fui sendo levado por uma intuição, uma busca de querer fazer algo como aquilo que via, um desenho que me identificava e isso foi me levando. Eu comecei a sair dessa zona periférica para buscar”, compartilha Rona Neves.

Com uma grande bagagem de experiências e vivências, ele também fala que é preciso popularizar a arte, mas não de forma arbitrária ou mecânica. Para o artista, é preciso estabelecer um diálogo para ouvir esses jovens artistas. “Eu acho que o circuito pode ser levado pro mundo tudo, porque é a gente falando sobre a nossa comunidade, nosso território para o mundo”, diz o artista.

EXU NÃO É O DEMÔNIO
A arte é a expressão mais comum de resistência social e de união pelo bem comum. Pensando nisso, os artistas Carlos Vera Cruz e Priscila Duque criaram dois vídeos performance para expressarem os pontos de vista que carregam.

O vídeo performance “Exu não é o demônio”, de Carlos Vera Cruz, foi gravado em inúmeros ônibus da cidade. Mas por que a escolha de um local tão inusitado? O artista explica que sempre se sentiu incomodado com a constante pregação agressiva de passageiros evangélicos que sobem nos coletivos para disseminar a religião, sem se importar ou perguntar como os outros passageiros se sentem em relação a isso. “Me incomoda muito a forma como as pessoas entram e fazem essa abordagem, porque quando você não responde ou não acredita na mensagem que estão tentando passar, eles te tratam mal e o país é laico, não é um país apenas cristão”, explica Carlos Vera Cruz.

Carlos Vera Cruz – Foto: Ariela Motizuki

“Me incomoda muito a forma como as pessoas entram e fazem essa abordagem, porque quando você não responde ou não acredita na mensagem que estão tentando passar, eles te tratam mal e o país é laico, não é um país apenas cristão”

O mesmo não é feito por praticantes de outras religiões, até a chegada de Carlos e alguns pais e mães de santos, o que deixou algumas pessoas incomodadas. “Vi pessoas trocando de lugar muito incomodadas com o que estávamos fazendo e com uma expressão incrédula, como quem diz: eu esperava tudo, menos isso”, relata Carlos.

Por conta de uma visão equivocada e preconceituosa de que Exu é o demônio, Vera Cruz viu a necessidade de desmitificar a imagem de Exu e resolveu chamar atenção para o genocídio de pais e mães de santo por conta da forte intolerância religiosa que assola o país. “A Lei 10.639 não é aplicada nas escolas por uma série de entraves, principalmente questões religiosas, que impedem o ensino da afro religiosidade, então essa performance é fundamental, estamos vivendo em um período de muitas intolerâncias, que estão se tornando atos reais, inclusive assassinatos”, diz Carlos Vera Cruz.

Já Priscila Duque transformou o vídeo performance dela no “Manifesto Marielle Vive”, que foi escrito por ela apenas três dias após o assassinato da vereadora. O objetivo do manifesto é chamar atenção para todas as violências que o povo negro sofre todos os dias, principalmente a violência policial e reiterar que o povo não será calado e muito menos voltará a submissão como nos tempos sombrios da escravidão.

Priscila Duque – Foto: Ariela Motizuki

A artista expressa a importância do manifesto. “É importante ecoar a voz da Marielle, ecoar uma voz também como a minha, negra, uma voz feminina, consciente, e empoderada que não foi silenciada. Na verdade, ela foi expandida, infelizmente com a morte dela, mas é uma força que está em nós, então, onde eu puder levar a minha voz nessa intercessão com a voz dela, eu vou estar levando”, diz Priscila Duque.

“É importante ecoar a voz da Marielle, ecoar uma voz também como a minha, negra, uma voz feminina, consciente, e empoderada que não foi silenciada. Na verdade, ela foi expandida, infelizmente com a morte dela, mas é uma força que está em nós, então, onde eu puder levar a minha voz nessa intercessão com a voz dela, eu vou estar levando”

A ARTE É LIBERTAÇÃO
A falta de acesso à informação, incentivo aos estudos, esporte e manifestações artísticas enfraquecem a força de questionamento do povo negro e, principalmente da mulher negra, que durante muito tempo foi e ainda é excluída do sistema social e datadas como inferior. Completamente esquecidas e abandonadas, as jovens negras encontram na arte uma forma de resistência, começando a criar a própria identidade.

Mostrar mulheres que são protagonistas e atrizes sociais é muito impactante e inspirador, por isso criar um espaço de fala para mulheres que são invisibilizadas e marginalizadas em nossa sociedade é extremamente importante, principalmente para aquelas mulheres que nunca ouviram falar de arte por culpa da disparidade social e educacional. As jovens Gabriela Monteiro e Fernanda Vera Cruz são a prova disso. As duas sempre se sentiram á margem da sociedade, nunca ouvidas, sem saber muito bem onde pertenciam, foi através da arte que elas deram um basta nisso.

A arte foi libertadora para a artista Fernanda. Ela estava passando um período de profunda tristeza e depressão, por conta do racismo estrutural que a atingia, decidiu transformar toda a sua dor em arte. “O racismo nos faz sentir culpa por ter outras urgências, temos que corresponder a tudo o que esperam de ti, mas ninguém quer realmente saber como tu estás. Como é que é ser mal atendida por alguém na padaria ou como é ser mal recebida no ônibus, na rua ou até mesmo na faculdade pelos professores, então eu comecei a pintar sobre mim, sobre minha dor”, conta a artista.

Fernanda Vera Cruz – Foto: Gabriel Pinheiro

“O racismo nos faz sentir culpa por ter outras urgências, temos que corresponder a tudo o que esperam de ti, mas ninguém quer realmente saber como tu estás. Como é que é ser mal atendida por alguém na padaria ou como é ser mal recebida no ônibus, na rua ou até mesmo na faculdade pelos professores, então eu comecei a pintar sobre mim, sobre minha dor”

Já a artista Gabriela vê na arte uma recuperação de identidade, porque ela mostra como o povo negro tem uma capacidade intelectual e artística que nos foi tirada durante e após o processo de escravização. “A arte mostra que nós somos capazes de interpretar e de se expressar, algo que nós sempre tivemos desde a época de nossos ancestrais que o processo de escravização nos tirou. O racismo até hoje tira essa ideia de que nós temos capacidade intelectual e artística”, diz a artista.

CIRCUITO SARAVÁ PARA TODOS!
O Circuito Saravá chamou atenção de quem mora no outro lado do rio. O jovem empreendedor Boá é morador da ilha do Combu e, quando soube da exposição, pesquisou sobre Rona Neves, conheceu o seu trabalho na internet, se encantou e fez questão de comparecer na exposição. Ele conta que trabalha com turismo de experiência na ilha, considera a ancestralidade um elemento importantíssimo em sua formação, uma vez que os pais e avós dele faziam o mesmo trabalho na região das ilhas e fala da experiência de marcar presença na exposição. “É um trabalho que eu me identifico muito, tem uma relação muito grande com o que eu faço e essa relação me fez vir pra cá pra exposição hoje”, diz o visitante.

Boá – Foto: Ariela Motizuki

A obra que mais chamou atenção dele foi uma de Rona Neves, chamada “Girando em sentido anti-horário”, por remeter a um retorno e resgate da ancestralidade, algo que foi feito por ele também quando iniciou o trabalho na região das ilhas. Boá fala sobre a visão dele sobre a abertura de espaço para os artistas. “Uma galeria como a Benedito Nunes abrir espaço para esses artistas gera um fortalecimento, um fortalecimento de raça!”, diz o empreendedor.

“Uma galeria como a Benedito Nunes abrir espaço para esses artistas gera um fortalecimento, um fortalecimento de raça!”

Em Belém, surgem novas tribos de pessoas buscando pertencer e serem ouvidas, por isso o Circuito Saravá é tão importante para dar voz a essas pessoas. Ainda falta muito espaço para arte em Belém, mas algumas pessoas estão dispostas a mudar esse cenário e lutar pela valorização da cultura em nosso estado.

Quer saber mais sobre toda essa força de arte e ancestralidade no Circuito Saravá? Confere abaixo o vídeo do primeiro dia!


Imagens: Ariela Motizuki | Roteiro: Ariela Motizuki | Edição: Elson Britto | Reportagem: Yasmin Talita | Produção: Gabriella Salame e Heleno Beckmann | Fotografia: Gabriel Marques e Ariela Motizuki | Apoio: Gabriel Marques e Treme Filmes | Edição geral: Gabriella Salame | Estratégias digitais: Heleno Beckmann.

0Sem comentário

Deixe um Comentário