A periferia é resistência e a educação é a única arma possível

Na perifa de Belém, nós encontramos a fusão da educação e da arte que juntas são capazes de reverberar vozes

Redação por Gabriel Marques

Multiartista Rona Neves, professora Líla Melo, jovens e colaboradores do CineClube TF – Foto: Tyago Thompson (Melé Produções)

Transformações, trocas, ação e diálogo. Essas são as palavras que definiram o contato entre o artista carioca Rona Neves e os jovens da Escola Estadual Brigadeiro Fontenelle, do bairro da Terra Firme, em Belém. O encontro foi promovido no 4° e último dia do Circuito de Arte e Ancestralidade – Saravá, no dia 27 de abril, que contou com exposições de arte, poesia, música, dança e serviu para reforçar, em tempos de desvalorização do pensamento, a importância da arte e da educação na vida de um jovem negro periférico.

“Eu vim contar a minha história pra vocês, mas prefiro que vocês falem sobre as suas experiências. Eu tenho certeza que são enriquecedoras”, avisou Rona para cerca de 30 jovens que estavam na sala. O contato com o Cineclube da Terra Firme, projeto idealizado pela professora Lilia Melo, mostrou não só aos jovens, mas ao artista que as vivências compartilhadas entre eles eram de realidades muito próximas, apesar da distância entre os estados do Pará e o Rio de Janeiro.

Em uma de suas falas, após uma recepção com aplausos, poesias e dança, Rona relata que desde o começo de sua caminhada como artista ouvia o “não”, inclusive da própria família. “Eu não desisti porque a arte está em mim, ela se manifesta, então, eu digo pra vocês: Não desistam jamais, continuem lutando e indo atrás do que vocês acreditam”, aconselhou o multiartista com emoção no olhar.

“Eu não desisti porque a arte está em mim, ela se manifesta, então, eu digo pra vocês: Não desistam jamais, continuem lutando e indo atrás do que vocês acreditam”

O projeto incentiva a criação de poesias e potencializa o talento dos alunos – Foto: Gabriel Marques

Professora da escola Brigadeiro Fontenelle há 10 anos e idealizadora do Cineclube TF, Lilia Melo destaca que a identificação com Rona surgiu antes mesmo de conhecê-lo pessoalmente. “Cada vez que eu me deparava com uma arte dele, uma fala ou entrevista eu percebia que ele vive o que a gente vive e faz o que a gente faz. O Rona é um estágio mais acima do lugar onde nós estaremos daqui para o amanhã”, conta a educadora.

A CALÇADA É O PALCO
A Caminhada de muitos jovens presentes no Cineclube TF também envolve sonhos e a força para vencer barreiras. Dentre essas histórias está a do professor de dança Rafael, do coletivo Arte Dance, parceiro de longa data do projeto. Ele explica que a dança, assim como a arte em Rona, sempre esteve dentro dele e que era preciso externá-la. “Sempre dancei, o meu corpo sentia, a minha alma sentia isso e eu precisava colocar pra fora. Até que um tempo depois, acabei descobrindo o que era a arte de dançar”, conta o professor.

“Sempre dancei, o meu corpo sentia, a minha alma sentia isso e eu precisava colocar pra fora. Até que um tempo depois, acabei descobrindo o que era a arte de dançar”

O professor Rafael fala sobre a paixão pela dança – Foto: Gabriel Marques

Após conseguir uma bolsa em uma escola de dança, Rafael sentiu a necessidade de compartilhar o aprendizado que recebia. “A partir do momento que eu comecei a aprender na escola de dança, quando eu chegava em casa, ficava pensando “De alguma forma eu tenho que receber esse conhecimento e passar para outras pessoas que também sentem isso”, mesmo sem saber por onde começar”, relata o professor que começou a ensinar a sobrinha, irmã e as pessoas mais próximas tudo o que aprendia.

“Mesmo sem saber os vários benefícios da dança eu tinha noção que ela era ótima, porque eu me sentia muito bem. ‘Vocês precisam sentir essa emoção que eu sinto’ eu pensava”, conta Rafael com orgulho. Ao criar o coletivo Arte Dance, ele passou a ensinar os jovens e parentes e transformou as calçadas da Terra Firme em um palco. “Tudo que eu aprendia eu ensinava pra eles, na calçada, ás vezes por debaixo de chuva. A nossa rua é cheia de lama, mas é o nosso palco. Foi lá que eu me realizei e faço com que essa galera se sinta muito feliz, e isso me orgulha muito”.

“Tudo que eu aprendia eu ensinava pra eles, na calçada, ás vezes por debaixo de chuva. A nossa rua é cheia de lama, mas é o nosso palco. Foi lá que eu me realizei e faço com que essa galera se sinta muito feliz, e isso me orgulha muito”

A EDUCAÇÃO QUE TRANSFORMA E DÁ VOZ
A Terra Firme é um dos maiores bairros de Belém do Pará, possui cerca de 60 mil habitantes e é conhecida como um dos bairros mais perigosos da capital paraense. Foi lá que nasceu o Cineclube TF, um projeto que com a união de jovens e da comunidade transforma vidas e mostra que a periferia não é só um espaço para acontecimentos ruins, mas um lugar de resgate e resistência.

Jovens compartilham a arte produzida – Foto: Gabriel Marques

Idealizado pela Professora Lilia Melo, o projeto potencializa o talento da juventude da periferia. No cineclube, os jovens produzem música, poesias, pinturas, promovem diálogos e até mesmo curta metragem audiovisuais. “A juventude negra periférica é uma juventude artística, criativa, de ação e voz, e o cineclube TF é um instrumento que reverbera essa voz e expande esse movimento possibilitando o alcance de outra juventude de outros lugares, de outros estados”, explica Lilia, que em 2018 foi vencedora do prêmio “Professores do Brasil” na etapa nacional por conta do trabalho desenvolvido no Cineclube.

“A juventude negra periférica é uma juventude artística, criativa, de ação e voz, e o cineclube TF é um instrumento que reverbera essa voz e expande esse movimento possibilitando o alcance de outra juventude de outros lugares, de outros estados”

Engana-se quem pensa que o Cineclube TF surgiu da noite para o dia, ele é “Um braço muito maior”, como explica Lilia. “Isso que vocês estão vendo aqui é uma exposição quase histórica porque ela faz uma narrativa histórica desse projeto”, conta a professora sobre as exposições dos alunos em uma das salas da escola Brigadeiro Fontelle.

A arte expressa o pensamento dos jovens – Foto: Gabriel Marques

A história tem início em novembro de 2014 com a chacina da Terra Firme, caso que chocou o Pará e até mesmo o Brasil. Os crimes mudaram o dia a dia dos moradores do bairro que não saiam de casa com medo da violência. Os alunos também não estavam mais frequentando a escola. Ao ver a onda de pânico que tomou o bairro inteiro, Lilia resolveu reagir.

Em janeiro de 2015 ela acionou os coletivos do bairro e após algumas articulações foi possível realizar diversas oficinas. Em 2018, a professora fez uma ação que levou vários jovens da periferia ao cinema assistir o filme Pantera Negra, produção carregada de afro-representatividade. “Após essa ida ao cinema, potencializamos essas oficinas a criarem seus próprios grupos dentro do projeto (arte, dança, teatro, poesia), então não era mais o coletivo de fora. Nós passamos a ter nossos próprios grupos”, ressalta Lilia sobre os GT’s (Grupos de trabalho) que foram nascendo para que o Cineclube tomasse forma.

Desenhos em exposição – Foto: Gabriel Marques

De quebra o projeto ainda ajuda a romper estereótipos sobre a periferia, mostrando que lá também é palco para muitos talentos. É através do audiovisual que a periferia expõe seu melhor lado e mostra o fazer artístico que não vai para a mídia tradicional. “Os pormenores da periferia, do dia a dia, que é construído e de fato é o que se produz lá, não vão para a mídia tradicional. Eis aí a necessidade de uma ferramenta virtual e de um espaço audiovisual que promova esse fazer”, aponta Lilia Neves.

De quebra o projeto ainda ajuda a romper estereótipos sobre a periferia, mostrando que lá também é palco para muitos talentos. É através do audiovisual que a periferia expõe seu melhor lado e mostra o fazer artístico que não vai para a mídia tradicional. “Os pormenores da periferia, do dia a dia, que é construído e de fato é o que se produz lá, não vão para a mídia tradicional. Eis aí a necessidade de uma ferramenta virtual e de um espaço audiovisual que promova esse fazer”, aponta Lilia Neves.

Diretamente, o projeto atinge cerca de 40 jovens, mas esse número só cresce a cada dia. “Se me perguntarem amanhã, esse número pode estar em 45 ou 50, porque não existe nenhum critério além da vontade que a pessoa tem de participar”, explica a professora. Indiretamente, através de saraus nos espaços públicos periféricos, o Cineclube TF passa a atingir uma média de 600 jovens, tudo isso por já possuir um nome forte quando falamos em educação transformadora.

Projeção que carrega mensagem de união – Foto: Gabriel Marques

Ao olhar para tudo que foi perpassado até agora, Lilia não hesita em reforçar o quanto a educação é a base para que muitas vidas possam ser resgatadas. “A educação é um espaço de transformação social. Quando eu vejo essas vidas sendo transformadas, vejo que a minha missão tá sendo cumprida. É isso que eu quero, é isso que acredito, é pra isso que eu vivo, eu não sei fazer outra coisa se não isso!”, a educadora conclui.

HISTÓRIAS DO PROJETO
Se a educação é capaz de transformar uma pessoa, significa que ela muda ou cria novas visões e perspectivas sobre si mesmo e o mundo. Foi o que aconteceu com a Coordenadora Geral dos grupos de trabalho e aluna da Brigadeiro Fontelle, Victoria Castelhano. Após participar de várias rodas de conversa ela passou a reconhecer o seu valor como mulher negra. “Em uma das rodas de conversa sobre assumir ideias e falar do afro eu acabei participando porque eu não aceitava o meu cabelo e não aceitava a minha identidade negra. A partir disso eu passei a me soltar e assumir minha identidade, meu cabelo e me impor como mulher negra”, conta a jovem que também passou a ajudar amigas ao seu redor. “Quando passamos a trocar experiências a gente se liberta. Eu ajudo as mulheres a se aceitarem, verem o seu valor, sua raça, cor e se imporem na sociedade”, acrescenta.

“Quando passamos a trocar experiências a gente se liberta. Eu ajudo as mulheres a se aceitarem, verem o seu valor, sua raça, cor e se imporem na sociedade”

A vida da jovem Natasha Angel também mudou após o contato com o Cineclube TF através da poesia. Atualmente, Natasha é Coordenadora do GT de poesia preta, um dos “braços” do projeto. “A poesia preta surgiu pra mim num período muito difícil da minha vida, ela foi um refúgio e pra mim é um mecanismo de libertação, tanto física quanto mental”, conta a estudante. Natasha afirma que por meio da poesia foi possível encontrar respostas e uma voz para se expressar. “Durante muito tempo eu sentia timidez, mas hoje eu entendo que, na verdade, era um silenciamento a mim imposto. Eu pensava “Eu não vou falar porque eu estou com vergonha”, mas eu tinha sim algo pra falar!”, ressalta.

Natasha Angel e Victoria, alunas e coordenadoras de GT’s do Cineclube – Foto: Gabriel Marques

Se o projeto já atingiu inúmeras pessoas do Pará ou fora dele, para a Coordenadora de produção Cleidiane Sousa ainda há muito a se fazer. “Eu ainda acho que tudo que as pessoas falam que é muito grande pra mim é pouco. Ele é muito maior. Quando um jovem se encontra na arte e se liberta e sabe que é um caminho que ele pode se sustentar, que ele vai se realizar e protagonizar a sua história eu me sinto realizada”, conta. “Para mim, só de ver esses jovens transformados eu me transformo também, me torno uma pessoa melhor todos os dias”.

O Cineclube da Terra Firme é um dos muitos projetos existentes no Brasil que resgatam vidas jovens e negras pelo incentivo da arte e da educação, dando voz a pessoas que muitas vezes são enquadradas em estereótipos por conta de suas origens e de quebra mostram que a periferia também é um grande palco para histórias de superação e novos começos.


Reportagem: Gabriel Marques | Fotografia: Gabriel Marques e Melé Produções | Produção: Gabriel Marques e Gabriella Salame | Edição geral: Gabriella Salame | Estratégias digitais: Heleno Beckmann | Apoio: Melé Produções

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